Proclamação
do Dogma da Imaculada Conceição de Nossa Senhora
O
dia dessa solene proclamação foi de incomparável alegria, jamais
esquecido, e deve-se recordá-lo sempre para honra e glória da
obra-prima da criação, a Mãe Puríssima do Divino Infante.
[...] O
Bem-aventurado Papa Pio IX, fundamentado na Sagrada Escritura e no
testemunho constante da Tradição (a transmissão oral passada de
geração a geração), e por virtude do Magistério infalível,
declarou ser de revelação divina que Maria Santíssima foi
totalmente isenta do pecado original, desde o primeiro instante de
sua concepção, consignado como está na Bula Ineffabilis Deus, de 8
de dezembro de 1854 [...].
Tal
declaração revestiu-se de especial esplendor, pois, ao mesmo tempo
que representava uma glória para Nossa Senhora e a Santa Igreja, era
também um triunfo sobre o liberalismo e o ceticismo que corroíam a
Civilização Cristã, que afrontavam o Vigário de Cristo e os
direitos da Santa Sé, naqueles meados do século XIX. Período esse
conturbado por revoluções anticatólicas em várias partes do
mundo, desencadeadas sobretudo pelos propugnadores do racionalismo,
do naturalismo e do anarquismo — inimigos da Igreja, fulminados por
aquele Pontífice em diversos documentos.
Foi
enorme o aplauso entusiástico que reboou entre os católicos da
Terra inteira, porque o singular privilégio da Imaculada
Conceição(1) — no qual incontáveis santos, teólogos e fiéis em
geral sempre creram desde os primórdios do cristianismo, e ao longo
de todos os séculos — por fim era definido como verdade de fé.(2)
Confirmação
do dogma
Para
esse bendito dia o mundo católico já estava preparado. A Santíssima
Virgem, Ela própria, fizera tal preparação: em 1830, recomendara a
Santa Catarina Labouré a difusão da Medalha Milagrosa, contendo a
jaculatória mundialmente conhecida: “Ó Maria concebida sem
pecado, rogai por nós que recorremos a vós.!”(3)
Quatro
anos após a proclamação do dogma da Imaculada Conceição, no dia
25 de março de 1858, em Lourdes, Nossa Senhora confirma tal verdade
de fé. Quando a pequena vidente Bernadette Soubirous perguntou-Lhe
quem era Ela, Nossa Senhora, depois de estender os braços — como
se vê na Medalha Milagrosa —, juntou as mãos à altura do
coração e respondeu: “Eu sou a Imaculada Conceição!”
No
calamitoso século XX, em Fátima, a Virgem Santíssima recomendou a
devoção a seu Coração Imaculado e prometeu: “Por fim, o meu
Imaculado Coração triunfará!”. Era esta mais uma magnífica
confirmação do dogma proclamado pelo Bem-aventurado Papa Pio IX no
século XIX.
O
pecado original
“E
[Deus] de um só [homem] fez [descender] todo o gênero humano,
para que habitasse sobre toda a face da Terra” (At 17, 26). Nossos
primeiros pais, Adão e Eva, foram criados “à imagem e semelhança
[de Deus]” (Gn 1, 26), no estado de graça e inocência, de justiça
e santidade; receberam o dom da imortalidade; viviam perfeitamente
felizes no paraíso terrestre, e, na ordem da graça, participavam da
própria natureza divina. Mas desobedeceram ao Criador e, obedecendo
à serpente infernal, ficaram escravizados ao demônio. Em
conseqüência desse pecado, os rebelados foram expulsos do paraíso,
perderam os dons sobrenaturais que possuíam; de seres angelicais,
tornaram-se carnais; ficaram sujeitos a todas as enfermidades e
misérias e à morte. Resultado: todos os seus descendentes ficamos
maculados, herdamos os efeitos do pecado original, com o qual todos
nascemos.(4)
Deus
poderia ter abandonado a humanidade nesse estado pecaminoso, mas, por
sua infinita misericórdia, quis salvar os homens. Ele asseverou ao
demônio, sob a forma da serpente maldita: “Porei inimizades entre
ti [o demônio] e a Mulher [Maria Santíssima], entre a tua
descendência [os maus] e a descendência d´Ela [Jesus Cristo e os
bons]; Ela te esmagará a cabeça” (Gn 3, 15).
Obra-prima
de Deus
A
fim de que se operasse a salvação do gênero humano, tornava-se
necessária uma reparação. Como? Por meio da Encarnação do Filho
unigênito de Deus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, que viria
à Terra reparar a malícia infinita do pecado, padecer na Cruz pelos
homens e, com seu sacrifício, redimi-los. Este mistério cumpriu-se
por obra do Espírito Santo, com a Encarnação do Verbo de Deus,
Nosso Senhor Jesus Cristo. “Eis
que a Virgem conceberá e dará à luz um filho, e o chamarão pelo
nome de Emanuel, que quer dizer: Deus conosco” (Mt 1, 23) —
anunciou tal mistério o Profeta Isaías, sete séculos antes de sua
realização (Is, 7, 14).
“Quem
é esta que se levanta como a aurora que surge, bela como a
lua, resplandecente como o sol, terrível como um exército
enfileirado para a batalha?” (Cant 6, 9). Os exegetas interpretam
esse texto como sendo o nascimento da Santíssima Virgem, que, como a
aurora, anuncia o nascer do sol — o sol de Justiça, o Salvador do
gênero humano que se fez homem para nos salvar. Nossa
Senhora, obra prima da criação, é a antítese de Eva. O Magistério
da Igreja ensina que a má ação de Eva, associada à de Adão —
causadora da ruína da humanidade — foi desagravada por Nossa
Senhora, a nova Eva, associada a Nosso Senhor Jesus Cristo, o novo
Adão.(5)
Isenção
de qualquer mácula...
Em
sua qualidade de Mãe de Deus, não seria sapiencial que Ela fosse
concebida sem mácula alguma? Ao contrário de todos os seres humanos
— que, sem exceção, vêm ao mundo com a mancha original —, não
seria possível que Ela fosse a única exceção? Sim,
é claro, para Deus nada é impossível. Não convinha que a Mãe do
Verbo de Deus fosse, ainda que por um instante apenas, maculada pelo
pecado original, portanto escravizada ao demônio. Se tivesse
contraído a mancha original, Ela ficaria, mesmo sem culpa própria,
sob o domínio do demônio.
Mas,
se Nosso Senhor Jesus Cristo veio à Terra para redimir todos os
homens, como ensina o dogma da Redenção Universal, em que situação
fica Nossa Senhora? Ela não estaria incluída na Redenção, se foi
isenta do pecado antes da vinda do Salvador? Ela não precisaria,
portanto, da Redenção? Os teólogos ensinam que o privilégio da
Imaculada Conceição foi-Lhe concedido em previsão dos méritos que
seriam adquiridos por Nosso Senhor e Ela se beneficiou da Redenção
antes que esta se consumasse.
“Potuit,
decuit, ergo fecit” (Deus podia fazê-lo, convinha que o fizesse,
logo o fez). Com este célebre axioma, o beato franciscano João Duns
Scoto (1265-1308) concluíra sua exposição, em defesa da Imaculada
Conceição, na Universidade de Paris. Foi considerado um brilhante
triunfo o fato de ter sintetizado, na sentença acima, as razões do
referido privilégio. Deus Todo Poderoso podia criar a Virgem
Santíssima isenta de pecado. Ele certamente o queria, pois convinha
à altíssima dignidade daquela que viria a ser a Mãe do Divino
Salvador, que Ela estivesse livre de qualquer mácula; Ele, portanto,
concedeu-lhe tal privilégio. Temos aí o maravilhoso e singular
privilégio da Imaculada Conceição.
...na
previsão da Redenção
A
Santa Igreja ensina que Maria Santíssima foi preservada do pecado
original, na previsão dos futuros méritos da Vida, Paixão e Morte
de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele a pré-redimiu desde o primeiro
instante da sua existência, sendo Ela, devido aos frutos da
Redenção, criada em estado de inocência original. Sendo
concebida sem pecado original, Ela ficou também preservada de
qualquer concupiscência (de qualquer tendência para o mal), que é
decorrência da mancha deixada pelo pecado original, sem no entanto
ser culpa pessoal. Não
é crível que Deus Pai onipotente, podendo criar um ser em perfeita
santidade e na plenitude de inocência, não fizesse uso de seu poder
a favor da Mãe de seu Divino Filho.
O
Doutor da Igreja Santo Afonso Maria de Ligório (1696-1787), em seu
livro Glórias de Maria Santíssima, exemplifica de modo muito vivo
tal questão: “Suponhamos
que um excelente pintor tivesse que desposar uma noiva, formosa ou
feia, conforme os traços que lhe desse. Que diligência não
empregaria, então, para torná-la a mais bela possível! Quem
poderá, pois, dizer que outro tenha sido o modo de agir do Espírito
Santo, relativamente a Maria? Podendo criar uma Esposa toda formosa
como Lhe convinha, teria deixado de fazê-lo? Não! Tal como Lhe
convinha A fez, como atesta o próprio Senhor, celebrando os
louvores de Maria: ‘És toda formosa, minha amiga, em ti não há
mancha original’” (Cânt 4, 7)”.(6).
São
Bernardino de Siena, famoso pregador popular do século XV, dá-nos
outro exemplo igualmente eloqüente: “Nenhum
outro filho pode escolher sua Mãe. Mas se a algum deles fosse dada
tal escolha, qual seria aquele que, podendo ter por mãe uma rainha,
a quisesse escrava? Ou, podendo tê-la nobre, a quisesse vil? Ou,
podendo tê-la amiga, a quisesse inimiga Deus? Ora, o Filho de Deus,
e Ele tão somente, pôde escolher para si uma mãe a seu agrado. Por
conseguinte, deve-se ter por certo que A escolheu tal qual convinha a
um Deus. Mas a um Deus puríssimo convinha uma Mãe isenta de toda
culpa. Fê-La, por isso, imaculada”.(7)
Na
comemoração dos 150 anos do dogma da Imaculada Conceição, e em
agradecimento a Deus pelas prodigiosas graças advindas dessa
magnífica declaração pontifícia, prestamos nossa humilde
homenagem, mediante a propagação da devoção Àquela que é “cheia
de graça” e “bendita entre todas as mulheres”(Lc 1, 28).
Nesse
sentido, oferecemos a seguir a nossos leitores alguns trechos
extraídos do muito bem documentado livro Pio IX, de autoria do Prof.
Roberto de Mattei, formado em História Contemporânea na
Universidade La Sapienza, de Roma, e titular da cátedra de
História Moderna na Universidade de Cassino. Essa obra, recentemente
publicada em português, narra — entre diversos outros fatos da
vida do Bem-aventurado Papa Pio IX — os antecedentes da definição
dogmática e o solene ato, culminante do pontificado do “Papa da
Imaculada Conceição”.
Por
fim, apresentamos também aos caros leitores substancioso artigo da
lavra do líder católico brasileiro de projeção mundial, Prof.
Plinio Corrêa de Oliveira, redigido para Catolicismo,
por ocasião do centenário dessa definição dogmática.
Predileção
pelo Brasil
Não
poderíamos encerrar esta introdução sem lembrar a honra obtida
pelo Brasil, de ter como Padroeira e Rainha Nossa Senhora da
Conceição Aparecida (vide Catolicismo, setembro
p.p.). Conceição que lembra justamente o privilégio da concepção
sem mancha, de que ora tratamos.
Ademais,
outra imensa honra para nosso País, obtivemos pouco tempo após o
Descobrimento: “Em 1549, chegou ao Brasil o primeiro
Governador-Geral, Tomé de Souza, cuja esquadra trazia em sua
nau-capitânea a Imagem de Nossa Senhora da Conceição. Em Salvador,
então capital da colônia, foi edificada próxima ao porto a
primeira capela. Nesse pequeno templo religioso, passou a ser
venerada a Imagem, e por causa de sua localização era a primeira a
ser visitada por todos os que chegavam de viagem. A igreja primitiva
foi demolida no século XVIII, para dar lugar a outra, bem maior,
cujas paredes foram constituídas por pedras artisticamente
esculpidas em Portugal e de lá trazidas para Salvador”.(8)
Rogamos
a nossa Augusta Padroeira e Rainha, concebida sem pecado original,
que, na atual quadra da História do Brasil, açoitado por tantas
borrascas, nosso País corresponda a tão maternal predileção. Que
Ela conceda, especialmente a todos seus filhos brasileiros, uma
admiração enlevada por sua pureza imaculada e um horror a qualquer
forma de pecado.
E-mail do autor:
oscarvidal@catolicismo.com.br
*
* *
__________Notas:
1. “Imaculada Conceição: Significa que, desde o primeiro instante de sua concepção, a Bem-aventurada Virgem Maria possuía a justiça e a santidade ou graça, com as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo, e a integridade da natureza” (Cardeal Gasparri, Catéchisme Catholique, Nazareth, Chabeuil (Drôme), 1959, p. 73).
2. Dogma, ou seja, as verdades nas quais todos católicos devemos crer.
3. Vide Catolicismo, nº 647, novembro/2004, p. 36.
4. Nascemos com o pecado original, que herdamos de Adão e Eva, mas dele somos remidos com o Batismo. O Catecismo citado na nota 1 assim define em que consiste esse sacramento: “É um sacramento instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo sob a forma de ablução [ato de lavar-se]. Por esse sacramento o batizado torna-se membro do Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja; ele obtém a remissão do pecado original e de todos os pecados atuais [quando o batizado é adulto] que tenham sido cometidos, bem como de toda a pena devida; enfim, ele torna-se capaz de receber os outros sacramentos. [...] O Batismo é necessário a todos para serem salvos, pois, segundo a palavra de Jesus Cristo: ‘quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus’ (Jo 3,5)” (Cardeal Gasparri, op. cit., pp. 192 e 196). Além do batismo de água, a Igreja ensina a existência do batismo de sangue (pelo martírio) e o batismo de desejo, aplicado aos pagãos que, não tendo meios de conhecer a Igreja, entretanto praticam a Lei Natural e desejariam receber o batismo se o conhecessem.
5. “Por ter dado crédito à serpente, Eva acarretou maldição e morte ao gênero humano. Maria acreditou nas palavras do Anjo, e obteve que aos homens viesse bênção e vida. Por culpa de Eva, nascemos filhos da ira; por Maria recebemos Jesus Cristo, que nos regenera como filhos da graça” (Catecismo Romano, Ed. Vozes Ltda., Petrópolis, 1962, p. 103).
6. Santo Afonso Maria de Ligório, Glórias de Maria Santíssima, Ed. Vozes Ltda., Petrópolis, 1957, p. 199.
7. Op. cit., p. 194.
8. Catolicismo, nº 327, março/1978, p. 2